domingo, 2 de maio de 2021

Nós, os dogmáticos

Não, eu não sou tolerante.

Não, eu não quero "debater" ou "dialogar" com liberais democratas, sofistas pós-modernos, comentadores, carnalistas, hedonistas, mencheviques, individualistas...

Não, eu não te respeito, nem te pedi respeito também.

Os defensores da tolerância, debate, diálogo e respeito fazem propaganda para suas credenciais burguesas com tanta advocacia.

Me desculpa, seus apologistas da exploração do trabalho, mas, não, eu não entendo como meu dever é dar espaço para o meu inimigo se expressar.

Vocês já têm o videodrome global, o judiciário, a polícia, o sistema psiquiátrico e os exércitos mais poderosos do mundo do seu lado. Se isso não é suficiente, vocês sempre podem se esforçar para construírem o seu próprio perfil e plateia para então fazerem um coro de aprovação para o seu mundano-infernal (Te daria muito trabalho, né? Pois é, foi o que pensei).

Não se iludam: différances, incomensurabilidade, jogos de linguagem, formas de vida, muito longe de desestabilizar o Sistema Operacional Dominante são o sistema operante propriamente dito. Zizek está certo sobre Rorty estar certo: apesar das aparentes picuinhas filosóficas, a conclusão política das teorias do Derrida e do Habermas (e presumivelmente o Lyotard também se encaixa aqui) é exatamente a mesma: a defesa de valores liberais como o respeito pelo Outro etc. etc.

Sim, eu quero deixar tudo isso para trás. Um dos escândalos no pensamento do Badiou é enunciar o extremamente óbvio: a diferença não é suprimida pela ordem estabelecida, é a sua moeda banal. Fragmentação, desconstrução, técnica cut-up são as coisas que fazem uma mediocracia*.

Então, sim, pode cuspir em mim, eu sou um dogmático.

Mas o que significa ser um dogmático?

Resumidamente, envolve o compromisso com a visão de que Verdades existem. Podemos adicionar a isso, a visão de que o Bom existe.

Não é à toa que, desde Kant, o racionalismo tem sido sinônimo de dogmatismo. Pós-Kant, nos acostumamos a visão de que a crítica ao invés do dogma é a única posição ética e filosófica possível, então “dogmatismo racional” soa como o pior xingamento imaginável.

Mas de onde vem esse ataque? Fundamentalmente, de quatro posições inter-relacionadas: autoritarismo, misticismo, egotismo e relativismo.

Longe de ser um equivalente do autoritarismo, como o doxa liberal o considera, o dogmatismo é a única alternativa efetiva ao autoritarismo. Autoritarismo e “formas de vida” pós-modernas se implicam mutuamente. A insistência familiar PoMo relativista de que não é possível nem desejável arbitrar entre diferentes reinvindicações éticas e ontológicas as tornando “incomensuráveis” e oriundas de “jogos de linguagem” acabam tornando a razão uma refém do misticismo. Diferente de outros sistemas racionalistas, que procedem de axiomas ou princípios existentes, essas “formas de vida” são incapazes de apontar para qualquer raciocínio que as dão fundamento. A mera existência de “comunidades discursivas” serve de justificativa para quaisquer tradições e crenças que tais comunidades possam aderir. Não é surpresa que o Espinosa era temido e vilipendiado pelas autoridades de todas as religiões estabelecidas, já que ele usava somente a razão para provar que a crença central na qual o teísmo tradicional se baseava – que existe um Deus pessoal, transcendente que faz milagres e tem livre-arbítrio – era uma bobagem irracional. Em outras palavras, foi o dogmatismo do Espinosa que lhe permitiu acabar com a “autoridade” da Torá.

Em termos da filosofia acadêmica contemporânea, o racionalismo é assediado não somente pelo misticismo poético nietzschiano-wittgensteiniano-lyotardiano, mas também pelo culto qualia da consciência. Essa “filosofia” substitui o mistério inefável de Deus com o mistério inefável da consciência. Consiste somente da declaração negativa de que a consciência não pode ser explicada pela ciência ou pela filosofia. Isso é uma religião no pior sentido.

Mas o dogmatismo é religião no melhor sentido. É somente pelo dogmatismo – uma subordinação implacável de seu Ser a um sistema impessoal – que sua majestade, o Ego, pode ser massacrado. Esse tem sido o apelo de religiões não-teístas ao longo das épocas. O Ego é simplesmente a autoridade em miniatura (assim como o autoritarismo político é o Egotismo em sua forma mais óbvia), um mini déspota que só pode ser chutado de seu trono por meio do comprometimento com uma sistematicidade sóbria.

Finalmente, é um erro opor dogmatismo ao pragmatismo. O pós-modernismo defende o pragmatismo em todos os níveis: não somente no nível de como as coisas podem ser feitas (o reino da práxis), mas também no nível do que deve ser feito. Porém, o dogmatismo é capaz de distinguir entre o que deve ser feito – qual é o objetivo – de como pode ser realizado.


Tradução minha. Espero ter feito jus ao tom do Fisher, que é mordaz, frio e preciso.

Camarada Fisher, presente!


Original: Fisher, Mark. We dogmatists. In: Fisher, Mark. K-punk: the collected and unpublished writings of Mark Fisher from 2004-2016. Edited by Darren Ambrose. London: Repeater Books, 2018. 

*mediocracia é de mediocracy, que seria tipo uma ditadura de centristas, de gente medíocre. pensa em um governo do Luciano Huck, para dar um exemplo perfeito.



 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário