Não, eu não sou tolerante.
Não, eu não quero
"debater" ou "dialogar" com liberais democratas,
sofistas pós-modernos, comentadores, carnalistas, hedonistas, mencheviques,
individualistas...
Não, eu não te respeito, nem te
pedi respeito também.
Os defensores da tolerância,
debate, diálogo e respeito fazem propaganda para suas credenciais burguesas com
tanta advocacia.
Me desculpa, seus apologistas da
exploração do trabalho, mas, não, eu não entendo como meu dever é dar espaço para
o meu inimigo se expressar.
Vocês já têm o videodrome global,
o judiciário, a polícia, o sistema psiquiátrico e os exércitos mais poderosos
do mundo do seu lado. Se isso não é suficiente, vocês sempre podem se esforçar
para construírem o seu próprio perfil e plateia para então fazerem um coro de
aprovação para o seu mundano-infernal (Te daria muito trabalho, né? Pois é, foi
o que pensei).
Não se iludam: différances, incomensurabilidade,
jogos de linguagem, formas de vida, muito longe de desestabilizar o Sistema
Operacional Dominante são o sistema operante propriamente dito. Zizek está certo sobre
Rorty estar certo: apesar das aparentes picuinhas filosóficas, a conclusão
política das teorias do Derrida e do Habermas (e presumivelmente o Lyotard também
se encaixa aqui) é exatamente a mesma: a defesa de valores liberais como o
respeito pelo Outro etc. etc.
Sim, eu quero deixar tudo isso para
trás. Um dos escândalos no pensamento do Badiou é enunciar o extremamente
óbvio: a diferença não é suprimida pela ordem estabelecida, é a sua moeda
banal. Fragmentação, desconstrução, técnica cut-up são as coisas que fazem uma mediocracia*.
Então, sim, pode cuspir em
mim, eu sou um dogmático.
Mas o que significa ser um
dogmático?
Resumidamente, envolve o
compromisso com a visão de que Verdades existem. Podemos adicionar a isso, a
visão de que o Bom existe.
Não é à toa que, desde Kant, o
racionalismo tem sido sinônimo de dogmatismo. Pós-Kant, nos acostumamos a visão
de que a crítica ao invés do dogma é a única posição ética e filosófica possível,
então “dogmatismo racional” soa como o pior xingamento imaginável.
Mas de onde vem esse ataque?
Fundamentalmente, de quatro posições inter-relacionadas: autoritarismo,
misticismo, egotismo e relativismo.
Longe de ser um equivalente do
autoritarismo, como o doxa liberal o considera, o dogmatismo é a única alternativa efetiva
ao autoritarismo. Autoritarismo e “formas de vida” pós-modernas se implicam
mutuamente. A insistência familiar PoMo relativista de que não é possível nem desejável
arbitrar entre diferentes reinvindicações éticas e ontológicas as tornando “incomensuráveis” e oriundas de “jogos de linguagem” acabam tornando a razão uma refém do misticismo. Diferente de outros
sistemas racionalistas, que procedem de axiomas ou princípios existentes, essas
“formas de vida” são incapazes de apontar para qualquer raciocínio que as dão fundamento. A mera existência de “comunidades discursivas” serve de justificativa
para quaisquer tradições e crenças que tais comunidades possam aderir. Não é
surpresa que o Espinosa era temido e vilipendiado pelas autoridades de todas as
religiões estabelecidas, já que ele usava somente a razão para provar
que a crença central na qual o teísmo tradicional se baseava – que existe um
Deus pessoal, transcendente que faz milagres e tem livre-arbítrio – era uma
bobagem irracional. Em outras palavras, foi
o dogmatismo do Espinosa que lhe permitiu acabar com a “autoridade” da Torá.
Em termos da filosofia acadêmica contemporânea,
o racionalismo é assediado não somente pelo misticismo poético nietzschiano-wittgensteiniano-lyotardiano,
mas também pelo culto qualia da consciência. Essa “filosofia” substitui o
mistério inefável de Deus com o mistério inefável da consciência. Consiste
somente da declaração negativa de que a consciência não pode ser explicada pela
ciência ou pela filosofia. Isso é uma religião no pior sentido.
Mas o dogmatismo é religião no
melhor sentido. É somente pelo dogmatismo – uma subordinação implacável de seu
Ser a um sistema impessoal – que sua majestade, o Ego, pode ser massacrado.
Esse tem sido o apelo de religiões não-teístas ao longo das épocas. O Ego é
simplesmente a autoridade em miniatura (assim como o autoritarismo político é o
Egotismo em sua forma mais óbvia), um mini déspota que só pode ser chutado de
seu trono por meio do comprometimento com uma sistematicidade sóbria.
Finalmente, é um erro opor
dogmatismo ao pragmatismo. O pós-modernismo defende o pragmatismo em todos os
níveis: não somente no nível de como as coisas podem ser feitas (o reino da
práxis), mas também no nível do que deve ser feito. Porém, o dogmatismo é capaz
de distinguir entre o que deve ser feito – qual é o objetivo – de como pode ser
realizado.
Tradução minha. Espero ter feito jus ao tom do Fisher, que é mordaz, frio e preciso.
Camarada Fisher, presente!
Original: Fisher, Mark. We dogmatists. In: Fisher, Mark. K-punk: the collected and unpublished writings of Mark Fisher from 2004-2016. Edited by Darren Ambrose. London: Repeater Books, 2018.
*mediocracia é de mediocracy, que seria tipo uma ditadura de centristas, de gente medíocre. pensa em um governo do Luciano Huck, para dar um exemplo perfeito.
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