domingo, 2 de maio de 2021

sobre alienígenas, pirâmides e lagartos grandes

Mark Fisher já cantou a bola: a maioria das teorias da conspiração é uma expressão de solidariedade entre as classes dominantes. 

evidências: o 1% acumula mais da metade das riquezas produzidas pelo 99%? é porque, na verdade, eles são todos alienígenas dotados de poderes inimagináveis e por isso eles estão ganhando a luta de classes. os magnatas do petróleo são responsáveis por 70% das emissões de carbono? não, querido, o que importa é que a disney vai transformar os seus filhos em jihads do politicamente correto.

tá vendo onde o Fisher quer chegar? 

ao invés da gente se concentrar na abstração real que rege o nosso mundo (i.e. capital) caímos na cilada de explicações mirabolantes para situações (relativamente) simples. então, qual é o apelo? o que leva uma pessoa a acreditar em uma cabal de lagartos grandes judeus? ou o que faz uma pessoa acreditar que já que ela não pode mais secretar microfascismos a torto e a direito, criou uma fantasia de que isso só pode se tratar de um complô comunista-gayzista?

eu acho muito bizarra a criatividade dessa galera pro mal. tipo, de onde tiraram essa história do Foro de São Paulo? e do bilionário George Soros ser comunista e andar metendo o bedelho por essas bandas, querendo transformar países latino-americanos na URSS? e essa gente querendo a volta da ditadura porque os militares são tãããão competentes e o Brasil nunca esteve tão melhor sob a tutela precisa e segura deles? inserir aqui o gif do john travolta confuso, por favor.

o que eu quero com esse post é tentar esboçar algum tipo de explicação para a atual proliferação das teorias de conspiração. acho que pra começo de conversa a gente tem que considerar que elas oferecem uma narrativa (completamente desprovida de fatos ou base na realidade, mas vamos dar o beneficio da dúvida, ok?) relativamente consistente e coerente sobre a realidade.

eu nunca tive muito contato com muitas dessas teorias da conspiração per se, só a da terra plana (o meu ex-cunhado me mostrou um vídeo sobre isso em 2015, completamente sóbrio e lúcido, achando tudo aquilo plausível) e de anti-vacina (lá em 2014, nos meus dias de anarcoprimitivista eu assisti zeitgest com o meu ex no nosso bunker, cof cof, quarto e no doc dizia que o Bill Gates tava colocando chips nas vacinas ant-gripe. migues: eu morri de rir). Q-Anon, mamadeira de piroca, george soros, illuminati, isso tudo eu fiquei sabendo depois. 

o fato é que é muito gratificante ter nossos pontos de vistas reforçados e de se sentir 'do lado certo da história'. sinceramente, eu simpatizo de verdade com a galera que diante dessa loucura que está sendo o século 21 busca algum sentido nisso tudo. só que acontece que não existe esse tal de 'lado certo'. na real mesmo, a história é um rolo compressor e o jeito de frear esse caminhão desembestado é, hmmm, com uma revolução, por exemplo.

então, o que é uma teoria da conspiração? um delírio coletivo? um atalho para entender coisas complexas? uma narrativa sedutora preferível ao invés da realidade monótona e banal? nenhuma dessas coisas? todas essas coisas?

eu acho que a resposta* envolve questões de forma e de conteúdo, e graças aos insights do daddy freud e do daddy marx, envolve também questões de inconsciente e ideologia. vou primeiro discutir a forma/conteúdo, depois a gente rola na lama das formações inconscientes/ideológicas. eba!

vamos a forma! 

bom, acho que é muito simples. 

não estou dizendo isso para fugir da raia não, eu realmente acho que a narrativa dessas teorias são construídas da maneira mais simples possível. são didáticas basicamente, e a utilização de uma linguagem persuasiva acaba induzindo a crença no alvo de que ele é muito esperto e sagaz por ter chegado a teoria x e as demais pessoas que estão 'de fora' são idiotas. então, a linguagem usada (verbal/visual/sincrética) é para ser direta e clara, persuasiva e didática. 

acho que o encadeamento narrativo deve ser similar ao dos contos de fadas: 

apresentação do problema > caracterização dos vilões e evidências de sua malvadeza > exaltação heroica de um líder e descrição de seus feitos > conclusão.

agora, para esmiuçar mesmo esse componente da forma será preciso criar vários corpora para análise, mas não é esse o escopo desse post. sorry, não vou me sujar com essas coisas e causar uma úlcera nessa altura do campeonato analisando essas pirações, não senhor. talvez, outro dia.

outra coisa importante: acho que essas teorias são uma espécie de toca de coelho da Alice - quanto mais fundo você vai, mais surreal fica. isso também colabora para a criação da comunidade e da distribuição do saber (os 'iniciados', os 'especialistas', os 'líderes', etc., a tal da hierarquia no interior do grupo).

em relação ao conteúdo, também é tranquilo entender o apelo. com a forma acertada, você pode pirar o tanto que você quiser: pessoas-topeira vivendo em baixo de instituições públicas; lagartos gigantes CEOs; mamadeiras fálicas sendo distribuídas em escolas; cabais globais de pedófilos que se encontram em uma pizzaria etc. ah, dá para ir longe! essa teoria do Q-Anon por exemplo tá no nível da epopeia de gilgamesh, ilíada ou odisseia.** 

o interessante é que tanto na conspiração do Q, quanto na do complô comunista brazuca, temos a figura do herói: trump no primeiro, bozonazi no segundo. claro, né! repetindo: toda teoria de conspiração é uma expressão de solidariedade entre as classes dominantes. 

agora o bagulho vai ficar (mais) louco: vamos falar de inconsciente e ideologia, baby!

sobre o quinhão do inconsciente: acho que o principal mecanismo atuante numa conspiração é a paranoia. achar que tem um vilão oculto querendo te pegar expressa um verdadeiro mal estar em relação as forças "invisíveis" que regem as nossas vidas, que não é permitido dar vazão no cotidiano. então, podemos dizer que uma pessoa que acredita em alguma teoria da conspiração dá o passo certo na direção errada. penso também que se trata de uma forma de esquizofrenia coletiva, i.e. ver conexões em tudo, querer acreditar que tudo tem relação com tudo. na verdade, trata-se de uma condição cognitiva típica desses tempos de capitalismo computacional, a apofenia (ver padrões de informação diante de um conjunto absurdo de dados aleatórios repletos de ruído). 

sem dúvida, tem uma pitada de negação também: diante dos horrores cotidianos, essas pessoas não querem encarar a realidade - querem se proteger dela a qualquer custo. digo isso porque toda vez que você vai falar sobre as condições materiais reais*** com esse povo é igual falar com as paredes. 

vamos agora pra parte que dá trabalho: os componentes de natureza ideológica. no caso das conspirações, eu acho que o negócio fica complicado por causa da articulação perfeita entre  forma/conteúdo: a narrativa é tão básica e ao mesmo tempo tão persuasiva, o que torna essas teorias altamente insidiosas e sedutoras. é um verdadeiro coquetel motolov cognitivo que atordoa qualquer um. 

não adianta, gente: é próprio do terreno da ideologia ser pantanoso - é difícil discriminar e destrinchar uma realidade tão naturalizada. por isso que ideologia em mente dura, tanto bate até que fura, como já diziam os papis Marx/Engels. 

mas, voltando: por definição, as ideologias são representações, ideias e discursos que são controlados pela classe dominante para criar uma visão inversa da realidade material. 

exemplo 1: cê tá fodido na vida por culpa total e exclusiva sua, não porque a sociedade brasileira a.k.a. periferia do capitalismo global é estratificada em classes e já que você não é dono dos meios de produção, é obrigado a vender seu corpinho (e agora sua cabecinha/sentimentos/subjetividade) como força de trabalho. 

exemplo 2: o verdadeiro culpado pela sua miséria e empobrecimento total é a classe fdp de rentistas desgraçados que causaram a desindustrialização gerada pela financeirização da economia, i.e. dinheiro gerando dinheiro sem compromisso com a criação de empregos (que dirá decentes, graças a reforma trabalhista patrocinada pela FIESP, bando de parasitas morféticos). 

ufa! quase fiquei sem fôlego aqui. ódio de classe é o principal responsável pela asma nesse país, pode checar esse dado aí.

mas viu como a visão se inverte na ideologia? para os interesses burgueses a causa sempre é individual, para nós socialistas, a causa é sistêmica (burgueses, fachos ou não: seus dias estão contados, mu ha ha ha!). 

uma teoria como a do Foro de São Paulo, inverte totalmente a realidade material política da esquerda organizada (quem dera! queria muito): na verdade não há absolutamente nada de nefasto nessa associação e não há uma esquerda organizada internacionalmente. bom, não ainda, nunca é tarde, né galera? (tocando 'A Internacional' no fundo). é... triste realidade, mas não existe um complô comunista no brasil. 

em relação a loucura coletiva dos gringos-ianques, a teoria do Q distorce completamente como o complexo industrial-militar e o poder político/econômico realmente funciona nos estados unidos. as maquinações bélicas do deep state fazem parte de uma política que transcende partidos: sai republicano, entra democrata, as coisas continuam as mesmas (agora tá tocando essa música de fundo).

além dessas quatro dimensões (forma/conteúdo/ideologia/inconsciente) o caldo engrossa ainda mais se considerarmos que vivemos sob a condição digital. essa aí é a maior causadora de confusão mesmo. graças ao estágio atual da cibernética/internet/big data/whatever coletamos uma quantidade de informações sobre o mundo/pessoas/coisas sem precedentes, é de pirar mesmo. 

hoje a gente sabe muito sobre muita coisa, mas a gente não consegue fazer nada com esse conhecimento. é realmente broxante o estado de coisas da técnica/política sob o capitalismo computacional. não é a toa que as pessoas se agarram a teorias da conspiração. 

acho que a tese onze do Marx/Engels merece mais uma coisinha: já não basta interpretar e transformar o mundo, a gente tem que ser capaz de meditar/refletir sobre ele. ser bombardeado todo santo dia por gigas ou teras**** de informação sem nenhuma paz/descanso/distância não é jeito de se viver.

então, como resolver essa bagaça? 

em um artigo para a revista jacobin, a escritora e host do podcast Chapo Trap House***** Amber A'Lee Frost e o historiador Daniel Bessner recomendam tratar esse fenômeno como uma espécie de seita. ou seja, não é pra ficar negociando com terroristas, porque não adianta engajar essa galera. é dar o pé, pronto e acabou.

para terminar com alguma esperança, deixo aqui algumas dicas de como lidar com isso:******

1. Planeje sua fuga: não compensa o contato prolongado com gente desse tipo.

2. Procure ajuda externa: não hesite em pedir ajuda, solidariedade é boa e todo mundo gosta.

3. Seja assertivo com a sua recusa: avisa ao membro da seita que está te assediando que você não quer nenhum tipo de contato com isso, assim ela para de te tirar anos de vida com essas baboseiras.

4. Silêncio total: restrinja a comunicação o máximo possível, se você conseguir/puder.

só mais alguma coisinha: um pouco de desconfiança das narrativas hegemônicas é muito bom e faz bem pra pele. é aquela velha história do remédio/veneno: uma dose de paranoia******* é saudável, mas se te botar no caminho de reptilianos em altos escalões do governo, dê meia volta e fuja imediatamente!

bom...acho que é isso por hoje. outro dia eu faço um post resenhando Veyne/Pfaller pra explicar o porquê as pessoas acreditam nas coisas, se é que de fato acreditam nelas mesmo.

ah! antes de encerrar, só quero deixar registrado que pra sair dessa enrascada de vez não há outra alternativa a não ser o socialismo/comunismo. a barbárie está deflagrada desde 1492. 

sejamos realistas, demandemos o impossível.

bjos e tchau tchau <3


*o jornalista britânico Jon Ronson tem um livro maravilhoso chamado Them: adventures with extremists. recomendo muito, ele faz uma boa historiografia/etnografia dessas grandes teorias da conspiração e das pessoas que alimentavam/circulavam essas doideras. a conclusão do autor é que para o nosso psiquismo é muito conveniente culpar uma minoria pelos nossos problemas, quando na verdade todo mundo está implicado na criação dessa bagunça chamada sistema capitalista. a minha opinião é que somente a classe trabalhadora pode acabar com isso porque a gente não tem nada a perder mesmo, temos um mundo a ganhar (TOCA A INTERNACIONAL DE NOVO AÍ, PORRA!!!!). 

**aviso de sátira/paródia/trollagem: não estou equiparando esse surto coletivo com os clássicos da literatura mundial. ESTOU ZOANDO, pelo amor de deus.

***exemplos: ao tentar explicar como a elite brasileira se estrutura, a galera-gado SURTA - 'vai pra cuba' é vírgula/ponto final pra galera, né. não dá pra gastar saliva com eles mesmo.

****gente, acabei de descobrir que tera (T) significa monstro em grego. o golpe tá aí, só cai quem quer.

*****Felix Biederman, se um dia você ler isso: te amo, casa comigo.

******adaptado do livro The Worst is Yet to Come: a post-capitalist survival guide do Peter Fleming.

*******nas palavras do tio bill burroughs: "A paranoid is someone who knows a little of what's going on. A psychotic is a guy who's just found out what's going on.”

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