quinta-feira, 27 de maio de 2021

eu (ou)vi o som do amor ou como eu me apaixonei por BTS

como resistir a essas criaturas? impossível! da esquerda pra direita: Jimin, J-hope, Jin, V, RM, JK e Suga.

quando a Clara me mandou escutar BTS pra ser mais feliz eu o fiz imediatamente porque 1. ela nunca está errada e 2. tinha se dado ao trabalho de me mandar uma playlist curada por ela mesma e quem sou eu para desrespeitá-la desse jeito e não dar pelo menos uma chance aos garotos. dei play. 

quando escutei os primeiros acordes de "Outro: Ego" meu coração disparou e deu aquele friozinho na barriga gostoso igual àquele que dá ao andar na montanha-russa ou quando nos deparamos com arte de primeira. dava pra sentir a serotonina, dopamina ou o que seja subindo na cabeça e fui tomada por uma alegria imensa e oceânica. pronto, o estrago tava feito. podem me incluir no A.R.M.Y porque agora eu sou cadelinha desses 7 meninos-homens maravilhosos. nunca fui tão feliz!*

eu espero com este post articular alguns pensamentos que eu tive ao mergulhar no universo lindo e maravilhoso dos BTS nesta última semana. lá vai!

bom, primeiramente, é muito bom. do ponto de vista musical, cada nota, cada timbre, cada sílaba é articulada e executada perfeitamente e nos dá uma experiência sonora tão sensual e rica que não encontramos por aí com facilidade nessa era desértica de música algorítmica. eu diria até que o som do BTS é uma mistura perfeita e irresistível entre o orgânico e inorgânico, entre o analógico e o digital. dá pra sentir o suor, o esforço humano em cada nota (e em cada passo de dança também). não é um trabalho feito por I.A. e jamais conseguirá ser (re)produzido por máquinas. é música demasiadamente humana feita para humanos. sendo que esses humanos criadores têm recursos infinitos e talento de sobra para criar tais obras super-humanas, é claro. agora, em termos de conteúdo, aaah! é altamente potente, sedutor, alegre... tem de tudo aí, letras sobre amor, sobre as angústias millennials de se viver no fim do fim da história, a luta contra o sentimento de não prestar pra nada nesse capetalismo infernal, júbilo escapista, ode à amizade, etc... de fato, é um universo mesmo. tem tudo pra todo mundo.

o arrebatamento que BTS nos proporciona é o encontro perfeito entre apolo e dionísio: a forma precisa, meticulosa encontra um conteúdo exuberante, intenso. não sei dizer quem é o meu favorito em cada line, todos são insanamente talentosos e competentes. mas se alguém me perguntar hoje, a minha resposta é: o suga é o meu favorito da rap line e o v, da vocal line**. todo mundo dança bem, não dá pra escolher um, desculpa.

eu queria ter um amigo neurologista que tirasse uma chapa do meu cérebro pré e pós-BTS. tenho certeza que os meus circuitos neurais agora são outros -- essa música mexe com o nosso hardware e software. Espinosa daria seu selo de aprovação porque ô coisa boa de escutar, viu! Só traz afetos alegres e espanta os tristes... BTS contra os maus encontros e a deterioração do corpo!

toda essa experiência me fez pensar em um ensaio da Ellen Willis ("Beginning to See the Light" contido no livro epônimo), sobre a contradição de ser uma feminista e gostar de rock (machista), que eu acho que se aplica ao BTS no seguinte sentido: sim, eles são produtos de uma indústria cultural hiper-capitalista tenebrosa; mas, de alguma forma eles conseguem quebrar com esse tipo de pop-neoliberal besta, eles rompem totalmente o consenso do realismo capitalista. "música tímida me faz me sentir tímida" ela disse; a subversão e diversão proporcionada pelo rock a faziam questionar e se rebelar contra o establishment, isto é, a própria contradição do rock subsidiava sua ação política, dava munição para lutar contra as opressões. BTS é isso, gente! a alegria, a excelência e a força do BTS reside nas contradições que perpassam sua música, no entanto, eles conseguem ir além delas e nos levam junto, ainda bem.

BTS é a flor no asfalto, é o grito de  "não!" para esse sistema corrupto e corruptor e é o "sim!" para o amor, a solidariedade e para esse novo mundo que, não se enganem, vai nascer. vai nascer porque ele já está , eu (ou)vi.

tem uma história muito fofa do DJ John Peel (BBC Radio 1) que conta que ele chorou quando ouviu "Teenage Kicks" do The Undertones pela primeira vez e a partir daquele momento, tocava duas vezes seguidas em todo programa. além de gostar da música, Peel admirava o fato daqueles meninos produzirem algo tão sublime em meio a tanta destruição e violência. chegava a ser subversivo o fato de que os Undertones produziram essa lindeza em uma Irlanda do Norte ocupada pelo exército britânico, com seus amigos morrendo ou matando, onde andar na rua não era seguro pra ninguém. nada te garantia uma segurança ou te protegeria de uma realidade em que você poderia ser sequestrado pelo exército ou morto por estar no lugar errado na hora errada (i.e. estar completamente à mercê de poderes coloniais arbitrários). é, soa terrivelmente familiar, né***. querer ser apenas um jovem e ir na casa do seu amorzinho para passar um tempo, apenas se deixar ser, diante daquelas circunstâncias horríveis, além de ser um desejo legítimo, era um exercício de prefiguração: não seria lindo um mundo onde todos**** os jovens pudessem estar seguros e em paz ao se encontrarem com o seu amorzinho? não terem nada pra fazer a não ser falar no telefone, beijar e dançar? é esse o mundo que eu quero. 

a OMS afirmou que a pandemia provoca(rá) um trauma tão grande quanto o da segunda guerra mundial. acho que as artes vão ter um trabalhão para elaborar tudo isso aí, mas uma coisa eu tenho certeza: os BTS vão produzir o álbum do século (pode vir! meu corpo está pronto!).

quando RM canta que ele quer nos consolar e nos dar força pra continuar, é muito difícil se render e cair no cinismo, achar que música pop não importa, que é tudo lixo. eu não consigo me entregar ao derrotismo -- eu realmente acredito nele e nos BTS também, dá pra sentir a sinceridade, o compromisso, o amor que eles têm pela música, pelos fãs. 

BTS destrói a presente irrealidade decrépita e cria outros mundos possíveis. depois desse post apaixonado é óbvio que estou falando pra largar tudo e ir escutar agora. aviso: não tem mais volta, mas, sinceramente, você jamais vai querer estar num mundo onde os BTS não te afetem.

a seguir o rol dos meus vídeos favoritos <3 <3 <3 <3









AVISO !!!! esse mv precisa ser visto com um desfibrilador do lado:




* só tive tal arrebatamento quando escutei grime, trap e 100 gecs pela primeira vez.

** atenção!!!! essa opinião não reflete, cof cof, os meus gostos na categoria "homens perfeitos". em tal quesito, eu sou namorada do JK e do RM [EDIT 07/06/2021: Teteco (V) virou o meu bias e o Yoongi (Suga) é o meu wrecker]. 

*** eu ainda não conseguir pensar direito sobre isso, mas baby da gal me dá essa mesma impressão que teenage kicks me dá. a dissonância cognitiva entre uma música bela e as condições de produção horríveis que, de alguma forma, penetram essa beleza e deixam alguns rastros. fica um post para outro dia.

**** aqui eu me inscrevo naquela velha estrutura de sentimento socialista internacionalista que quer liberdade, autonomia e dignidade incondicionais e irrestritas para TODO o mundo sem exceção.

domingo, 2 de maio de 2021

Nós, os dogmáticos

Não, eu não sou tolerante.

Não, eu não quero "debater" ou "dialogar" com liberais democratas, sofistas pós-modernos, comentadores, carnalistas, hedonistas, mencheviques, individualistas...

Não, eu não te respeito, nem te pedi respeito também.

Os defensores da tolerância, debate, diálogo e respeito fazem propaganda para suas credenciais burguesas com tanta advocacia.

Me desculpa, seus apologistas da exploração do trabalho, mas, não, eu não entendo como meu dever é dar espaço para o meu inimigo se expressar.

Vocês já têm o videodrome global, o judiciário, a polícia, o sistema psiquiátrico e os exércitos mais poderosos do mundo do seu lado. Se isso não é suficiente, vocês sempre podem se esforçar para construírem o seu próprio perfil e plateia para então fazerem um coro de aprovação para o seu mundano-infernal (Te daria muito trabalho, né? Pois é, foi o que pensei).

Não se iludam: différances, incomensurabilidade, jogos de linguagem, formas de vida, muito longe de desestabilizar o Sistema Operacional Dominante são o sistema operante propriamente dito. Zizek está certo sobre Rorty estar certo: apesar das aparentes picuinhas filosóficas, a conclusão política das teorias do Derrida e do Habermas (e presumivelmente o Lyotard também se encaixa aqui) é exatamente a mesma: a defesa de valores liberais como o respeito pelo Outro etc. etc.

Sim, eu quero deixar tudo isso para trás. Um dos escândalos no pensamento do Badiou é enunciar o extremamente óbvio: a diferença não é suprimida pela ordem estabelecida, é a sua moeda banal. Fragmentação, desconstrução, técnica cut-up são as coisas que fazem uma mediocracia*.

Então, sim, pode cuspir em mim, eu sou um dogmático.

Mas o que significa ser um dogmático?

Resumidamente, envolve o compromisso com a visão de que Verdades existem. Podemos adicionar a isso, a visão de que o Bom existe.

Não é à toa que, desde Kant, o racionalismo tem sido sinônimo de dogmatismo. Pós-Kant, nos acostumamos a visão de que a crítica ao invés do dogma é a única posição ética e filosófica possível, então “dogmatismo racional” soa como o pior xingamento imaginável.

Mas de onde vem esse ataque? Fundamentalmente, de quatro posições inter-relacionadas: autoritarismo, misticismo, egotismo e relativismo.

Longe de ser um equivalente do autoritarismo, como o doxa liberal o considera, o dogmatismo é a única alternativa efetiva ao autoritarismo. Autoritarismo e “formas de vida” pós-modernas se implicam mutuamente. A insistência familiar PoMo relativista de que não é possível nem desejável arbitrar entre diferentes reinvindicações éticas e ontológicas as tornando “incomensuráveis” e oriundas de “jogos de linguagem” acabam tornando a razão uma refém do misticismo. Diferente de outros sistemas racionalistas, que procedem de axiomas ou princípios existentes, essas “formas de vida” são incapazes de apontar para qualquer raciocínio que as dão fundamento. A mera existência de “comunidades discursivas” serve de justificativa para quaisquer tradições e crenças que tais comunidades possam aderir. Não é surpresa que o Espinosa era temido e vilipendiado pelas autoridades de todas as religiões estabelecidas, já que ele usava somente a razão para provar que a crença central na qual o teísmo tradicional se baseava – que existe um Deus pessoal, transcendente que faz milagres e tem livre-arbítrio – era uma bobagem irracional. Em outras palavras, foi o dogmatismo do Espinosa que lhe permitiu acabar com a “autoridade” da Torá.

Em termos da filosofia acadêmica contemporânea, o racionalismo é assediado não somente pelo misticismo poético nietzschiano-wittgensteiniano-lyotardiano, mas também pelo culto qualia da consciência. Essa “filosofia” substitui o mistério inefável de Deus com o mistério inefável da consciência. Consiste somente da declaração negativa de que a consciência não pode ser explicada pela ciência ou pela filosofia. Isso é uma religião no pior sentido.

Mas o dogmatismo é religião no melhor sentido. É somente pelo dogmatismo – uma subordinação implacável de seu Ser a um sistema impessoal – que sua majestade, o Ego, pode ser massacrado. Esse tem sido o apelo de religiões não-teístas ao longo das épocas. O Ego é simplesmente a autoridade em miniatura (assim como o autoritarismo político é o Egotismo em sua forma mais óbvia), um mini déspota que só pode ser chutado de seu trono por meio do comprometimento com uma sistematicidade sóbria.

Finalmente, é um erro opor dogmatismo ao pragmatismo. O pós-modernismo defende o pragmatismo em todos os níveis: não somente no nível de como as coisas podem ser feitas (o reino da práxis), mas também no nível do que deve ser feito. Porém, o dogmatismo é capaz de distinguir entre o que deve ser feito – qual é o objetivo – de como pode ser realizado.


Tradução minha. Espero ter feito jus ao tom do Fisher, que é mordaz, frio e preciso.

Camarada Fisher, presente!


Original: Fisher, Mark. We dogmatists. In: Fisher, Mark. K-punk: the collected and unpublished writings of Mark Fisher from 2004-2016. Edited by Darren Ambrose. London: Repeater Books, 2018. 

*mediocracia é de mediocracy, que seria tipo uma ditadura de centristas, de gente medíocre. pensa em um governo do Luciano Huck, para dar um exemplo perfeito.



 

 

sobre alienígenas, pirâmides e lagartos grandes

Mark Fisher já cantou a bola: a maioria das teorias da conspiração é uma expressão de solidariedade entre as classes dominantes. 

evidências: o 1% acumula mais da metade das riquezas produzidas pelo 99%? é porque, na verdade, eles são todos alienígenas dotados de poderes inimagináveis e por isso eles estão ganhando a luta de classes. os magnatas do petróleo são responsáveis por 70% das emissões de carbono? não, querido, o que importa é que a disney vai transformar os seus filhos em jihads do politicamente correto.

tá vendo onde o Fisher quer chegar? 

ao invés da gente se concentrar na abstração real que rege o nosso mundo (i.e. capital) caímos na cilada de explicações mirabolantes para situações (relativamente) simples. então, qual é o apelo? o que leva uma pessoa a acreditar em uma cabal de lagartos grandes judeus? ou o que faz uma pessoa acreditar que já que ela não pode mais secretar microfascismos a torto e a direito, criou uma fantasia de que isso só pode se tratar de um complô comunista-gayzista?

eu acho muito bizarra a criatividade dessa galera pro mal. tipo, de onde tiraram essa história do Foro de São Paulo? e do bilionário George Soros ser comunista e andar metendo o bedelho por essas bandas, querendo transformar países latino-americanos na URSS? e essa gente querendo a volta da ditadura porque os militares são tãããão competentes e o Brasil nunca esteve tão melhor sob a tutela precisa e segura deles? inserir aqui o gif do john travolta confuso, por favor.

o que eu quero com esse post é tentar esboçar algum tipo de explicação para a atual proliferação das teorias de conspiração. acho que pra começo de conversa a gente tem que considerar que elas oferecem uma narrativa (completamente desprovida de fatos ou base na realidade, mas vamos dar o beneficio da dúvida, ok?) relativamente consistente e coerente sobre a realidade.

eu nunca tive muito contato com muitas dessas teorias da conspiração per se, só a da terra plana (o meu ex-cunhado me mostrou um vídeo sobre isso em 2015, completamente sóbrio e lúcido, achando tudo aquilo plausível) e de anti-vacina (lá em 2014, nos meus dias de anarcoprimitivista eu assisti zeitgest com o meu ex no nosso bunker, cof cof, quarto e no doc dizia que o Bill Gates tava colocando chips nas vacinas ant-gripe. migues: eu morri de rir). Q-Anon, mamadeira de piroca, george soros, illuminati, isso tudo eu fiquei sabendo depois. 

o fato é que é muito gratificante ter nossos pontos de vistas reforçados e de se sentir 'do lado certo da história'. sinceramente, eu simpatizo de verdade com a galera que diante dessa loucura que está sendo o século 21 busca algum sentido nisso tudo. só que acontece que não existe esse tal de 'lado certo'. na real mesmo, a história é um rolo compressor e o jeito de frear esse caminhão desembestado é, hmmm, com uma revolução, por exemplo.

então, o que é uma teoria da conspiração? um delírio coletivo? um atalho para entender coisas complexas? uma narrativa sedutora preferível ao invés da realidade monótona e banal? nenhuma dessas coisas? todas essas coisas?

eu acho que a resposta* envolve questões de forma e de conteúdo, e graças aos insights do daddy freud e do daddy marx, envolve também questões de inconsciente e ideologia. vou primeiro discutir a forma/conteúdo, depois a gente rola na lama das formações inconscientes/ideológicas. eba!

vamos a forma! 

bom, acho que é muito simples. 

não estou dizendo isso para fugir da raia não, eu realmente acho que a narrativa dessas teorias são construídas da maneira mais simples possível. são didáticas basicamente, e a utilização de uma linguagem persuasiva acaba induzindo a crença no alvo de que ele é muito esperto e sagaz por ter chegado a teoria x e as demais pessoas que estão 'de fora' são idiotas. então, a linguagem usada (verbal/visual/sincrética) é para ser direta e clara, persuasiva e didática. 

acho que o encadeamento narrativo deve ser similar ao dos contos de fadas: 

apresentação do problema > caracterização dos vilões e evidências de sua malvadeza > exaltação heroica de um líder e descrição de seus feitos > conclusão.

agora, para esmiuçar mesmo esse componente da forma será preciso criar vários corpora para análise, mas não é esse o escopo desse post. sorry, não vou me sujar com essas coisas e causar uma úlcera nessa altura do campeonato analisando essas pirações, não senhor. talvez, outro dia.

outra coisa importante: acho que essas teorias são uma espécie de toca de coelho da Alice - quanto mais fundo você vai, mais surreal fica. isso também colabora para a criação da comunidade e da distribuição do saber (os 'iniciados', os 'especialistas', os 'líderes', etc., a tal da hierarquia no interior do grupo).

em relação ao conteúdo, também é tranquilo entender o apelo. com a forma acertada, você pode pirar o tanto que você quiser: pessoas-topeira vivendo em baixo de instituições públicas; lagartos gigantes CEOs; mamadeiras fálicas sendo distribuídas em escolas; cabais globais de pedófilos que se encontram em uma pizzaria etc. ah, dá para ir longe! essa teoria do Q-Anon por exemplo tá no nível da epopeia de gilgamesh, ilíada ou odisseia.** 

o interessante é que tanto na conspiração do Q, quanto na do complô comunista brazuca, temos a figura do herói: trump no primeiro, bozonazi no segundo. claro, né! repetindo: toda teoria de conspiração é uma expressão de solidariedade entre as classes dominantes. 

agora o bagulho vai ficar (mais) louco: vamos falar de inconsciente e ideologia, baby!

sobre o quinhão do inconsciente: acho que o principal mecanismo atuante numa conspiração é a paranoia. achar que tem um vilão oculto querendo te pegar expressa um verdadeiro mal estar em relação as forças "invisíveis" que regem as nossas vidas, que não é permitido dar vazão no cotidiano. então, podemos dizer que uma pessoa que acredita em alguma teoria da conspiração dá o passo certo na direção errada. penso também que se trata de uma forma de esquizofrenia coletiva, i.e. ver conexões em tudo, querer acreditar que tudo tem relação com tudo. na verdade, trata-se de uma condição cognitiva típica desses tempos de capitalismo computacional, a apofenia (ver padrões de informação diante de um conjunto absurdo de dados aleatórios repletos de ruído). 

sem dúvida, tem uma pitada de negação também: diante dos horrores cotidianos, essas pessoas não querem encarar a realidade - querem se proteger dela a qualquer custo. digo isso porque toda vez que você vai falar sobre as condições materiais reais*** com esse povo é igual falar com as paredes. 

vamos agora pra parte que dá trabalho: os componentes de natureza ideológica. no caso das conspirações, eu acho que o negócio fica complicado por causa da articulação perfeita entre  forma/conteúdo: a narrativa é tão básica e ao mesmo tempo tão persuasiva, o que torna essas teorias altamente insidiosas e sedutoras. é um verdadeiro coquetel motolov cognitivo que atordoa qualquer um. 

não adianta, gente: é próprio do terreno da ideologia ser pantanoso - é difícil discriminar e destrinchar uma realidade tão naturalizada. por isso que ideologia em mente dura, tanto bate até que fura, como já diziam os papis Marx/Engels. 

mas, voltando: por definição, as ideologias são representações, ideias e discursos que são controlados pela classe dominante para criar uma visão inversa da realidade material. 

exemplo 1: cê tá fodido na vida por culpa total e exclusiva sua, não porque a sociedade brasileira a.k.a. periferia do capitalismo global é estratificada em classes e já que você não é dono dos meios de produção, é obrigado a vender seu corpinho (e agora sua cabecinha/sentimentos/subjetividade) como força de trabalho. 

exemplo 2: o verdadeiro culpado pela sua miséria e empobrecimento total é a classe fdp de rentistas desgraçados que causaram a desindustrialização gerada pela financeirização da economia, i.e. dinheiro gerando dinheiro sem compromisso com a criação de empregos (que dirá decentes, graças a reforma trabalhista patrocinada pela FIESP, bando de parasitas morféticos). 

ufa! quase fiquei sem fôlego aqui. ódio de classe é o principal responsável pela asma nesse país, pode checar esse dado aí.

mas viu como a visão se inverte na ideologia? para os interesses burgueses a causa sempre é individual, para nós socialistas, a causa é sistêmica (burgueses, fachos ou não: seus dias estão contados, mu ha ha ha!). 

uma teoria como a do Foro de São Paulo, inverte totalmente a realidade material política da esquerda organizada (quem dera! queria muito): na verdade não há absolutamente nada de nefasto nessa associação e não há uma esquerda organizada internacionalmente. bom, não ainda, nunca é tarde, né galera? (tocando 'A Internacional' no fundo). é... triste realidade, mas não existe um complô comunista no brasil. 

em relação a loucura coletiva dos gringos-ianques, a teoria do Q distorce completamente como o complexo industrial-militar e o poder político/econômico realmente funciona nos estados unidos. as maquinações bélicas do deep state fazem parte de uma política que transcende partidos: sai republicano, entra democrata, as coisas continuam as mesmas (agora tá tocando essa música de fundo).

além dessas quatro dimensões (forma/conteúdo/ideologia/inconsciente) o caldo engrossa ainda mais se considerarmos que vivemos sob a condição digital. essa aí é a maior causadora de confusão mesmo. graças ao estágio atual da cibernética/internet/big data/whatever coletamos uma quantidade de informações sobre o mundo/pessoas/coisas sem precedentes, é de pirar mesmo. 

hoje a gente sabe muito sobre muita coisa, mas a gente não consegue fazer nada com esse conhecimento. é realmente broxante o estado de coisas da técnica/política sob o capitalismo computacional. não é a toa que as pessoas se agarram a teorias da conspiração. 

acho que a tese onze do Marx/Engels merece mais uma coisinha: já não basta interpretar e transformar o mundo, a gente tem que ser capaz de meditar/refletir sobre ele. ser bombardeado todo santo dia por gigas ou teras**** de informação sem nenhuma paz/descanso/distância não é jeito de se viver.

então, como resolver essa bagaça? 

em um artigo para a revista jacobin, a escritora e host do podcast Chapo Trap House***** Amber A'Lee Frost e o historiador Daniel Bessner recomendam tratar esse fenômeno como uma espécie de seita. ou seja, não é pra ficar negociando com terroristas, porque não adianta engajar essa galera. é dar o pé, pronto e acabou.

para terminar com alguma esperança, deixo aqui algumas dicas de como lidar com isso:******

1. Planeje sua fuga: não compensa o contato prolongado com gente desse tipo.

2. Procure ajuda externa: não hesite em pedir ajuda, solidariedade é boa e todo mundo gosta.

3. Seja assertivo com a sua recusa: avisa ao membro da seita que está te assediando que você não quer nenhum tipo de contato com isso, assim ela para de te tirar anos de vida com essas baboseiras.

4. Silêncio total: restrinja a comunicação o máximo possível, se você conseguir/puder.

só mais alguma coisinha: um pouco de desconfiança das narrativas hegemônicas é muito bom e faz bem pra pele. é aquela velha história do remédio/veneno: uma dose de paranoia******* é saudável, mas se te botar no caminho de reptilianos em altos escalões do governo, dê meia volta e fuja imediatamente!

bom...acho que é isso por hoje. outro dia eu faço um post resenhando Veyne/Pfaller pra explicar o porquê as pessoas acreditam nas coisas, se é que de fato acreditam nelas mesmo.

ah! antes de encerrar, só quero deixar registrado que pra sair dessa enrascada de vez não há outra alternativa a não ser o socialismo/comunismo. a barbárie está deflagrada desde 1492. 

sejamos realistas, demandemos o impossível.

bjos e tchau tchau <3


*o jornalista britânico Jon Ronson tem um livro maravilhoso chamado Them: adventures with extremists. recomendo muito, ele faz uma boa historiografia/etnografia dessas grandes teorias da conspiração e das pessoas que alimentavam/circulavam essas doideras. a conclusão do autor é que para o nosso psiquismo é muito conveniente culpar uma minoria pelos nossos problemas, quando na verdade todo mundo está implicado na criação dessa bagunça chamada sistema capitalista. a minha opinião é que somente a classe trabalhadora pode acabar com isso porque a gente não tem nada a perder mesmo, temos um mundo a ganhar (TOCA A INTERNACIONAL DE NOVO AÍ, PORRA!!!!). 

**aviso de sátira/paródia/trollagem: não estou equiparando esse surto coletivo com os clássicos da literatura mundial. ESTOU ZOANDO, pelo amor de deus.

***exemplos: ao tentar explicar como a elite brasileira se estrutura, a galera-gado SURTA - 'vai pra cuba' é vírgula/ponto final pra galera, né. não dá pra gastar saliva com eles mesmo.

****gente, acabei de descobrir que tera (T) significa monstro em grego. o golpe tá aí, só cai quem quer.

*****Felix Biederman, se um dia você ler isso: te amo, casa comigo.

******adaptado do livro The Worst is Yet to Come: a post-capitalist survival guide do Peter Fleming.

*******nas palavras do tio bill burroughs: "A paranoid is someone who knows a little of what's going on. A psychotic is a guy who's just found out what's going on.”

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