segunda-feira, 12 de abril de 2021

não deixe a crítica morrer, não deixe a crítica acabar

eu estou irritada com um certo tipo de discurso sobre a cultura e resolvi inaugurar este blógui com um post sobre isso.

vamos lá, então. 

me preocupa muito a miséria da crítica atual, em outras palavras, eu estou convencida de que há um movimento de neutralização de qualquer tipo de negatividade, de qualquer tipo de mal estar com a cultura pop. 

não está satisfeito com o novo filme da Mulher Maravilha? buuuu, sem graça, cê não entende de nada. tá achando que as músicas andam muito repetitivas e mornas? sai daqui sua adorniana sem graça.

o que se segue é uma tentativa de compreender o porquê não se pensa criticamente a cultura pop ultimamente, vindo de uma pessoa que vive pra isso, que não consegue conceber um mundo sem o pop. uma pessoa que tem como crença fundamental o seguinte: uma vida sem o novo single da charli xcx ou sem 'paid in full' do eric b. & rakim não vale a pena ser vivida. portanto, é crucial que o debate crítico dessa forma seja engajado e interessado, e que a crítica é um tipo de linguagem de amor. eu critico porque eu ligo. 

vamos delimitar os termos do debate primeiro. vou começar com a minha concepção de cultura pop, depois o que entendo por crítica e vou tentar te convencer que tudo isso importa. 

eu me criei com a mtv. citando a fala daquele doido do 'o pentelho': a mtv era a minha babá. me lembro distintamente de assistir o clipe de 'heart of glass' e pensar que a debbie harry era a mulher mais linda do mundo; de escutar 'how soon is now' e ficar confusa e com medo* daqueles sons, mas ainda sim fascinada. queria me perder naquele universo musical, passar o dia inteiro só sentindo as palavras, as vozes, os ritmos, as melodias. eu achava que a música podia mudar o mundo, afinal tinha mudado o meu. sempre gostei dos comentários dos críticos, de documentários que contextualizavam os artistas e os álbuns. como o disco 'nevermind' foi uma ruptura com o passado do rock, mas não poderia existir sem ele. como 'anarchy in the uk' abalou o reino unido e quase rompeu o tecido social daquela cultura. como 'the message' foi uma revolução musical que alterou profundamente a indústria fonográfica. o pop é, desde que o conheço, uma força de mudança. é moderno ou não será. 

aviso: não estou passando pano para as condições de produção e de circulação da música pop, muito menos tirando o das gravadoras da reta. nem estou implicando que o pop é revolucionário politicamente, muito pelo contrário. mas, segura esse raciocínio aí.

mais tarde, já tendo lido lester bangs, ellen willis, greil marcus, simon reynolds e tantos outros mais, eu me convenci de que sim, a música pop importa e transforma vidas. mas não quero que vocês interpretem que estou dizendo que a música pop, por si própria, tem o primado da subversão - não, não tem a ver com isso. eu acho que ela canaliza energias libidinais, e que ao fazer tal coisa pode ser um veículo ou uma aliada importante na criação de outros mundos. vide essa análise maravilhosa. 

o fazer político é de outra ordem, é outro trabalho. trabalho quase que ingrato porque é lento, é chato e envolve o empreendimento em ações coletivas que assustam o nosso psiquismo. a música pop não faz e nem deve fazer esse trabalho político de análise, de organização e de transformação. mas ela pode ser a fagulha desse desejo de emancipação. 

o argumento daí de cima não é só meu. vem da grande e saudosa ubercrítica ellen willis que diz o seguinte em Sex, Hope and Rock and Roll: 

Implicit in the formal language of mass art is the possibility that given the right sort of social conditions, it can act as a catalyst that transforms its mass audience into an oppositional community.

i.e. criticar é canalizar, dar coerência, dar sentido ao que a música veicula. o papel da crítica é de interpretar e contextualizar o que essa forma está fazendo no mundo, quais são as forças que ela mobiliza, que desejos estão sendo suscitados, - o que esta música diz sobre o nosso mundo? o que ela faz nesse mundo?

agora, se não tem a possibilidade de articular essa escuta e de debater todas essas coisas, como é que a gente vai saber o que está acontecendo? como vamos elaborar coletivamente quem somos nós e para onde estamos indo? 

eu acho que a resposta está entre as condições técnicas contemporâneas que, por sua vez, condicionam as possibilidades sociais e culturais. isso se desdobra em: i) o que está faltando em nossa cultura hoje é a tal da negatividade, é alguém chegar e dizer o que está errado, o porquê está tudo uma merda. só a crítica é capaz de articular essa negatividade, esse NÃO ESTÁ TUDO BEM NÃO, TÁ; ii) a maioria do consumo de bens culturais hoje se dá por meio de plataformas a base de algoritmos do tipo 'se você gosta de x, então y' o que francamente me causa espanto que o sistema não colapsou. às vezes já colapsou e a gente nem viu, né, tem isso. é impossível o funcionamento de uma cultura pop fundamentada somente no que se gosta, sem a oposição, sem a fricção, sem o choque do novo. o pop saudável tem que incomodar, tem que assustar.

francamente, como assim se eu gosto de nick cave eu tenho que ouvir tom waits? se eu escuto nick cave é ÓBVIO que eu escuto tom waits. quando eu vou no youtube tenho uma agonia porque os vídeos recomendados são só de coisas que eu conheço ou já escutei. parece que há uma parede invisível entre todas as outras alteridades musicais possíveis e os sons altamente familiares e enfadonhos. fora o branco que dá na gente ao pesquisar alguma coisa. credo, que inferno.

ó deus, me liberte da tirania de ter meus gostos reforçados continuamente! 

não existe mais aquela terra sem lei do youtube em que você escutava tangerine dream, depois era sugerido vashti bunyan, depois zia atabi e depois zé ramalho. isso não existe mais. é tudo blé. como o novo pode surgir nesse cenário monstruoso?

por isso a crítica é necessária: alguém vai ter que dar voz a esse mal estar cultural e dar sentido às irrealidades que estão se desdobrando diante de nós. eu imploro: não deixe a crítica morrer, não deixe a crítica acabar; o pop foi feito de crítica, de crítica para a gente criticar.


* a autora também morria de medo do chico science, do gene simmons do kiss e desse clipe do u2.

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